Conhecimento é direito: a campanha por direitos autorais mais equilibrados no Brasil

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A cultura, em sua essência, pulsa pela troca, pela recombinação de ideias e pela construção a partir do legado coletivo. Ao longo da história, essa natureza compartilhada do conhecimento tem frequentemente sido alvo de iniciativas variadas para aprisioná-la em molduras proprietárias. Na internet, onde as possibilidades de compartilhamento e colaboração se expandem exponencialmente, essa tensão histórica se intensifica, exigindo um olhar atento sobre as diversas estruturas regulatórias que incidem sobre a disponibilidade da informação e as possibilidades de sua utilização. Foi com objetivo de defender avanços na relação entre o universo digital e a Lei de Direitos Autorais que a Wikimedia Brasil e a Coalizão Direitos na Rede (CDR) realizaram a campanha #ConhecimentoÉDireito. Este texto pretende compartilhar parte do processo e da experiência que vivemos no desenho estratégico, na construção e operacionalização dessa iniciativa que visa atualizar a legislação brasileira, promovendo o acesso ao conhecimento como um direito fundamental na era digital.

Lançada em fevereiro deste ano pela Coalizão Direitos na Rede e pela Wikimedia Brasil, com o apoio de diversas outras organizações, a iniciativa nasceu da aprovação no edital 50/2024 no escopo de atuação do GT (Grupo de Trabalho) LibEx, um grupo da Coalizão que congrega acadêmicos e profissionais de diferentes perfis e regiões do país no esforço de contribuir para o desenvolvimento do direito da liberdade de expressão no Brasil, tendo o então Wiki Movimento Brasil, agora Wikimedia Brasil (WMB) como organização integrante e também proponente. Com o edital, o GT buscava reacender um debate antigo, mas com novas facetas no cenário atual – como as discussões promovidas pela ampliação do uso de Inteligência Artificial (IA) – a respeito da necessidade de modernização da Lei de Direitos Autorais (LDA) brasileira, de 1998. 

A proposta apresentada pela Wikimedia Brasil no escopo do edital definiu objetivos claros: explicar os problemas da legislação vigente na era digital, conscientizar sobre a relação entre acesso ao conhecimento e direitos autorais, e instigar uma revisão da LDA que esteja alinhada ao Pacto Digital Global da ONU, ao fortalecimento de bens públicos digitais e aos princípios de uma cultura genuinamente livre. A proposta também pretendia melhorar o entendimento público sobre o tema e engajar autoridades políticas em debates locais, estimulando a inclusão de cláusulas de licenciamento livre em políticas públicas e editais de fomento à cultura e pesquisa.

Uma construção coletiva

Antes mesmo de a campanha sair do papel, uma etapa de sua construção envolveu um profundo mergulho nas questões dos direitos autorais por meio de diálogos com especialistas e organizações parceiras. Foram realizadas reuniões semanais de diálogo com o próprio GT Libex, nos quais os integrantes traziam quais os consensos do grupo a respeito dos conceitos e argumentos centrais da campanha (sintetizados inclusive em um arquivo que serviu de referência para alguns dos materiais produzidos posteriormente). 

Também foram produzidos roteiros para quatro entrevistas com figuras-chave no pensamento sobre cultura livre e direito autoral no Brasil: Leonardo Foletto, jornalista, professor da FGV ECMI, pesquisador, editor do BaixaCultura, integrante do Creative Commons Brasil e autor do livro “A Cultura é Livre: Uma história da Resistência Antipropriedade”; Alice Lana, advogada, doutoranda em políticas públicas e membra do capítulo Creative Commons Brasil; Allan Rocha, advogado, presidente e diretor científico do IBDAutoral; e Pedro Perdigão Lana, advogado e membro do Instituto Observatório do Direito Autoral e do Creative Commons Brasil. Essas conversas preliminares foram insumos para refinar os argumentos, identificar os pontos mais críticos da legislação atual e solidificar a mensagem central da campanha.

Para mobilizar o debate público novamente neste debate, era preciso ir além e procurar mecanismos para conectar também um público não especializado ou não tão familiarizado com os termos técnicos. Para isso, a equipe construiu a narrativa da landing page, buscando sintetizar os pontos e tentando conectar com situações reais do cotidiano de todas as pessoas, que são afetadas pelo sistema altamente restritivo dos direitos autorais no Brasil. A partir desta visão mais abrangente sobre o tema, disposta em quatro breves sessões argumentativas, a página da campanha também permite conexão com materiais adicionais, que complementam e aprofundam a narrativa.

Além de disponibilizar guias e cartilhas já produzidos por organizações do setor, também foram produzidos materiais adicionais próprios da campanha, como o e-book “#ConhecimentoÉDireito: Democratizando o acesso ao conhecimento na Era Digital” e um folder que pode ser impresso e distribuído livremente para disseminar as mensagens centrais, além de um pacote visual que pode ser adaptado para cartazes, adesivos, entre outros. 

Estes materiais, direcionado a gestores públicos, legisladores, comunicadores e produtores de conteúdo digital, detalham os diversos entraves da Lei de Direitos Autorais no Brasil, como a problemática das obras órfãs e as restrições ao direito de panorama, e a importância de limitações e exceções mais amplas para fins educacionais e de pesquisa. 

O e-book promove a ideia de cultura livre e o uso de licenças Creative Commons, especialmente para obras financiadas com recursos públicos, e destaca a iniciativa da Secretaria de Cultura do Estado do Espírito Santo que, em um projeto feito em parceria com a Wikimedia Brasil (então sob o nome de Wiki Movimento Brasil) e o InternetLab, demonstrou que é possível construir um modelo eficaz de acesso a bens culturais, superando as limitações legais de maneira colaborativa.

Esta parceria resultou na produção do Guia de análise e licenciamento da Midiateca Capixaba, desenvolvido por várias frentes, reunindo esforços de diversos atores sociais para documentar parte deste projeto, que viabilizou o carregamento de mais de 4 mil imagens no Wikimedia Commons. O poder público, especialmente através da Secretaria de Cultura, desempenhou um papel fundamental ao identificar a necessidade de um marco regulatório que permitisse a disponibilização segura e legal de obras em ambientes digitais sob licenças livres. O guia é uma ferramenta útil para orientar as instituições culturais que tenham intenção de realizar o mesmo processo.

A campanha também abraçou a defesa dos Bens Públicos Digitais (DPGs), reconhecendo que softwares abertos, projetos de conteúdo e dados abertos e modelos de inteligência artificial abertos devem ser implementados e incentivados para construir uma internet pautada no bem comum. Para aprofundar essa discussão e torná-la acessível, a campanha produziu um vídeo específico sobre o tema conectando com o Pacto Digital Global, explicando o conceito e mostrando que a adoção de licenças livres por órgãos públicos pode ser um passo fundamental para fortalecer e ampliar o ecossistema de bens públicos digitais no Brasil, protegendo-os contra formas de colonialismo de dados e assegurando que os benefícios da digitalização sejam compartilhados de forma equitativa.

Como estratégia para manter a campanha “viva” ao longo de vários meses, a equipe adotou ainda alguns procedimentos fundamentais:

  • Duas semanas antes do lançamento da campanha, foi enviado um email para todas as organizações da Coalizão, em que foram compartilhados um status da produção (retomando os objetivos para as organizações que eventualmente não estivessem tão envolvidas), bem como uma página com todos os links de materiais necessários para a disseminação e engajamento com a campanha (um alinhamento geral, os elementos visuais, o release inicial, um pitch de mídia, os combinados de logística para as primeiras semanas, além de um espaço para as organizações indicarem interesse em fazer collabs nos posts); em outros momentos, a equipe disparou novos emails para a lista geral, compartilhando conquistas da campanha e novas oportunidades de colaborações;
  • Construção de um calendário de postagens semanais: toda quinta-feira geramos um novo post para as redes sociais da Wikimedia Brasil e da CDR, sempre com pelo menos mais duas organizações parceiras assinando em collab (em alguns casos, tivemos mais de 5 organizações com interesse em collab e precisamos fazer um rodízio, por conta dos limites para essa prática no Instagram). Nessas postagens, procuramos intercalar produções mais temáticas (que abordassem algum recorte de assuntos ou conceitos conectados com o argumento central), outras de depoimentos (para humanizar os conteúdos e mostrar pessoas conectadas com o debate, feitos a partir de recortes das entrevistas do início da campanha) e algumas de repercussão (mostrando notícias e programas que estivessem abordando a campanha ou nosso assunto central);
  • Status semanais para o grupo da CDR mais ligado à campanha, nos quais apresentamos um balanço das produções realizadas até então, a perspectiva dos próximos passos, além de abrir espaços de deliberação conjunta e planejamento de ações no médio e longo prazo.

Desafios

A trajetória da campanha #ConhecimentoÉDireito para ganhar espaço na grande imprensa ilustra tanto os desafios de pautar temas complexos e ainda fora da agenda midiática, quanto a resiliência de uma mensagem fundamental e com desdobramentos em muitos segmentos da sociedade. Inicialmente, houve uma baixa receptividade por parte dos jornalistas no início de 2025, um período marcado por outras pautas políticas e tecnológicas de grande repercussão. No entanto, a persistência e a adaptação estratégica, como o foco na intersecção entre direitos autorais e a regulamentação da Inteligência Artificial, começaram a gerar resultados, demonstrando as possibilidades de crescente penetração da discussão no debate público.

Um marco importante foi a publicação de um artigo aprofundado na plataforma internacional The Conversation, conhecida por sua linha editorial voltada para divulgação científica e debates acadêmicos, onde a urgência da modernização da LDA foi reforçada sob a ótica do conhecimento como um direito fundamental. Outra publicação fundamental ocorreu no Brasil de Fato, onde um artigo assinado por Chico Venâncio, vice-presidente da Wikimedia Brasil, explicou o anacronismo da lei de 1998 e como ela obstrui o acesso a conteúdos educacionais, científicos e culturais, muitos dos quais financiados com recursos públicos.

A campanha também contou com participação em podcasts, marcando presença para provocar o debate: em uma conversa proveitosa sobre direitos autorais no Tecnopolítica (Ep. #240), com Sérgio Amadeu e Chico Venâncio tratando sobre os direitos autorais na era da IA, a visão do conhecimento como bem comum e as nuances entre copyright e copyleft. O podcast Dadocracia (Ep. 170), produzido pela organização Data_Privacy e focado em tecnologia e sociedade, dedicou um episódio para discutir a tensão entre o acesso livre ao conhecimento e as restrições da lei atual, resgatando as origens da internet e apresentando a campanha como uma iniciativa chave no contexto atual. O canal Tecnologia e Classe (TeClas) no YouTube também reagiu a um dos vídeos da campanha #ConhecimentoÉDireito, em que Leonardo Foletto mostra que o debate sobre direitos autorais toca em todas as questões mais importantes da Cultura Livre atualmente.

A visibilidade na grande imprensa se concretizou com menções na Folha de S.Paulo, em espaços de grande alcance como as colunas de Bianca Santana e Monica Bergamo, esta última noticiando o lançamento do manifesto por entidades em prol da atualização da LDA. Chico Venâncio também concedeu entrevista ao Nexo Jornal, na qual detalhou a necessidade de aprimorar o ambiente digital brasileiro por meio da modernização dos direitos autorais, com consequências para o combate à desinformação e conexões com o Pacto Global Digital da ONU. Consideramos estes espaços conquistados como vitórias de um esforço intenso e constante. Foram disparadas três versões de releases, com abordagens diferentes, para mais de 200 contatos de jornalistas no Brasil, alguns deles recebendo em seguida mensagens mais diretas para confirmar interesse ou eventual necessidade de buscar novas abordagens. O esforço resultou em menos espaço do que gostaríamos e do que consideramos justo para o tema, mas já podemos identificar que tivemos avanços para que a pauta da modernização da LDA e ampliação das licenças livres ganhe de fato a importância que merece. 

Os próximos passos da campanha se voltam para a incidência política, pela qual a campanha promoverá reuniões e encontros com autoridades públicas e gestores locais, como Câmara dos Deputados e a Secretaria de Cultura do Pará, para  apresentar os argumentos em favor da adoção de licenças livres em obras sob gestão de órgãos públicos ou produzidas por eles, destacando a importância do acesso a esses conhecimentos por meio de políticas de utilização e fortalecimento de bens públicos digitais.

Em sua essência, a campanha #ConhecimentoÉDireito dialoga diretamente com os valores e a missão do Movimento Wikimedia: garantir que o conhecimento seja livremente acessível e construído colaborativamente. A modernização da Lei de Direitos Autorais é um passo fundamental para que o Brasil não apenas se alinhe às discussões globais sobre governança da internet e o impacto de tecnologias como a IA, mas também para que possa florescer um ecossistema digital mais justo.

Agradecemos à Coalizão Direitos na Rede e às organizações que integram ou apoiaram a campanha em algum momento, como Open Knowledge Brasil, Instituto Aaron Swartz, Instituto Nupef, AqualtuneLab, IDBAutoral, Intervozes – Coletivo Brasil de Comunicação Social, BaixaCultura, Creative Commons Brasil, Centro Palmares de Estudos e Assessoria por Direitos, Coletivo Digital, Coletivo Djarama e a Comunidade subreddit r/Pirataria. E a campanha continua, com o objetivo de ampliar o diálogo com a sociedade, engajar autoridades políticas e construir um futuro onde o conhecimento impulsione o desenvolvimento social, educacional, econômico e a inovação no país. Acreditamos que, coletivamente, podemos construir um Brasil onde o conhecimento e a cultura sejam direitos de todas as pessoas.

Se você ou sua organização também desejam apoiar a campanha, assine o manifesto #ConhecimentoÉDireito.

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